Na revista GÔNDOLA deste mês, uma reportagem especial mostra como a atuação da mulher em todos os níveis do segmento supermercadista – como profissionais, proprietárias ou consumidoras – foi decisiva para a evolução do segmento e garantia para o sucesso do negócio. Confira a seguir o texto completo da reportagem
Por Adenilson Fonseca
No dia 17 de julho de 1978, aos 19 anos, Alice Melo chegou ao setor de RH do Supermercado Epa à procura de emprego. Iniciou as atividades como balconista, depois exerceu a função de operadora de caixa, trabalhou na frente de caixa, no estoque e foi crescendo dentro da empresa. Hoje é gerente de Controladoria Interna. Alice é uma das precursoras da evolução da mulher no mercado de trabalho supermercadista. Na carreira,acompanhou muitas mudanças no segmento. Mas uma premissa ela acredita que se mantém. “A pessoa tem que ter garra com aquilo que está fazendo, tem que ser guerreira”.
E essa é uma qualidade que faz diferença num segmento que requer muita dedicação. Alice observa que nos anos 1970, para ser gerente de supermercadotinha que ser homem. Mas tudo mudou e hoje elas ocupam posições em todos os cargosno setor e já dividem, quase em pé de igualdade, a mão de obra do segmento supermercadista nacional. Em 2017 – último balanço disponível –as mulheres representaram 49,3% dos trabalhadores no segmento. Dez anos antes eram 45,6%, segundo dados da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). É bem verdade que em 2013 elas eram 52,4% da mão de obra do setor e em 2014, 51,5%. Mas o equilíbrio se mantém com ligeiras oscilações, sem distanciar muito da divisão meio a meio.
Considerando o total da população, a diferença nominal em favor delas é grande. Segundo projeções do IBGE, o Brasil terá 4,6 milhões de mulheres a mais do que homens ao final de 2019. Serão 107,3 milhões contra 102,7 milhões, ou 51,10% da população.Ou seja, número suficiente para decidir qualquer eleição. Para efeito de comparação, a população de Belo Horizonte é de 2,5 milhões de habitantes no total.
Elas decidem
Na escolha de “o que levar pra casa” elas dominam amplamente, já que volta e meia as pesquisas mostram que a mulher decide até 80% das compras de determinadas seções dos supermercados. A Kantar Word Panel, com dados de 2017,mostra que de tudo o que é comprado nas categorias de consumo massivo, como alimentos, bebidas, higiene e limpeza,52% é exercido pela mulher sozinha no ponto de venda. Isto é, ela vai à loja, define o que comprar e leva para casa. Quanto à decisão de compra,o número é maior, já que na maior parte das vezes o homem vai ao supermercado com uma lista elaborada pela mulher. A decisão do homem “sozinho” representa 12% dos gastos com a cesta. As outras comparações foram feitas com mulher e homem, mulher e criança, homem e criança, etc.
No comando
Quando o assunto é assumir o comando das empresas, a mulher não deixa nada a desejar em relação ao homem. Vários exemplos de sucesso empresarial em que o papel de protagonista cabe à mulher são registrados no setor. A gerente-administrativa do Supermercado Linhares, de Astolfo Dutra, na Zona da Mata, Silvana Dias Linhares, já fez
de tudo na empresa. Há 33 anos atuando, 29 deles na direção, ela conta que cresceu num ambiente de negócios. “Minha família é comerciante aqui desde 1885. Meu bisavô fundou (a empresa) e está passando de geração em geração. Ou seja, desde menina eu rodo por aqui, mas saí pra estudar e estou mesmo aqui há 33 anos, e na direção há 29 anos”, detalha.
Para operar a unidade, de aproximadamente 600 metros quadrados, com todas as seções – açougue, padaria, frutas, legumes – ela faz compras no dia a dia, cuida da parte de gestão e financeira, acompanha os resultados e orienta em outras atribuições, como a contratação e gestão de pessoal. Paraesta função, elacomeçou a fazer a sucessão. “Já estou passando esta parte para meu filho. Apenas oriento”, disse.
No front do negócio,Silvana recebe fornecedores diariamente, cuida de todas as demandas e não se sente inibida. “Hoje não sinto mais discriminação, como já senti muito. Já participei de muitas reuniões em que era só eu de mulher, mas aos poucos isso vem mudando”, conta. “Afinal, é um trabalho como outro qualquer. O fato de ser mulher acho que até me ajuda, porque nossa sensibilidade parece que é maior e a versatilidade e capacidade de se adaptar a mudanças também”.
Antes, só retaguarda
Alice, do Epa,recorda quequando iniciou no segmento os gerentes eram todos homens, cabendo àmulheras funções de retaguarda. Mas ela acha que não há diferença no desempenho do trabalho.O que é necessário, acredita, é aptidão para o cargo, responsabilidade e dedicação. “Eu não vejo diferença nas tarefas, mas a gente sabe das limitações, isso é claro. No trabalho, eu via que às vezes tinha de fazer funções que era homem quem fazia, como pegar peso, porque não existia os equipamentos que tem hoje, então a gente tem que ter a dignidade de chegar perto de alguém e pedir ajuda”, ensina.
Por outro lado, ela avalia que algumas funções são mais adequadas aos homens, mas sem radicalismos. “Hoje eu fico vendo essa guerra de homem e mulher e fico parada, olhando. A gente tem que galgar espaço, e com elegância. A diferença é na elegância e não ficar tentando mostrar, competir. Acho que tem que competir, mas com inteligência”.
Na avaliação de Alice, mulher tem o lado de pensar“um pouquinhomaiscom o coração”, de olhar mais o lado humano. “Ela põe a emoção, pensa um pouquinho e depois é que vai a razão no negócio. Vejo que a mulher é mais emocional”. Ela avalia que os problemas do dia a dia são inerentes a homens e mulheres e que, logo, todos podem estar sujeitos a ocorrências que alteram as emoções e o comportamento.
“Não é porque você é homem que vai chegar ao trabalho todo dia do mesmo jeito.Tem dia em que o carro fura o pneu, você não estava preparado para aquilo e descontrola”, ilustra. “Agora, vai falar que quem descontrola é só a mulher? Não! O homem também tem descontrole, e não por é fraqueza; é o ser humano”.
Ao longo da carreira ela acompanhou a evolução feminina no mercado de trabalho e avalia que isso vem do respeito à mulher. “Hoje, a minha maneira de ver é que tem respeito. Ela (a empresa) não olha o sexo, olha o resultado”. Segundo Alice, a diferença na maneira de trabalhar da mulher está na sutileza de notar os detalhes pertinentes ao setor e atuar de forma a agradar o cliente.
Edna Supermercado
Foi exatamente essa percepção que levou a empresária Edna Lúcia Lopes Silva, junto com o marido Marcelo Natalino da Silva,a fundar o Edna Supermercado, em novembro de 2003, em Bocaiuva, no Norte do Estado. Era um empreendimento de 250 metros quadrados e em imóvel alugado. A evolução da loja viria com a dedicação e o trabalho de Edna. Com a experiência de quem já havia atuado no comércio, ela procurou se diferenciar no segmento local, marcado pela grande presença de mercearias e supermercados menores.
O objetivo era oferecer à população aquilo que as pessoas queriam, mas o varejoda cidade não tinha. “Tudo o que é mais difícil é o que eu busco”, conta,referindo-se à procura constante de itens que o cliente não encontra em Bocaiúva. Empreendedora e apaixonada pela cidade, ela tenta evitar que a população local tenha que sair para comprar em outros municípios. “Com isso consigo conquistar o público da minha loja”, ilustra.
Ações que visam a simplesmente agradar o cliente e trazer mais conforto também são avaliadas constantemente por Edna. É o caso de investir em umidificação da loja, algo muito bem-vindo para uma das regiões mais secas e quentes do País. “Não se pode parar no tempo”, justifica. E não parou mesmo. Hoje, a loja tem 900 metros quadrados e sete checkouts e o prédio é próprio. “Realmente fiz um trabalho de capricho”, ressalta.
Dia a dia
No dia a dia do supermercado ela tem o apoio do sócio e marido, que cuida da parte de compras na Ceasaminas, em Contagem, e do departamento financeiro. Nas áreas como açougue, padaria e pessoal, Edna tem gerentes para cuidar, mas sempre com o acompanhamento dela. Porém, as compras de outros setores, o atendimento a vendedores e supervisão geral da loja é tudo por conta dela. Edna disse que busca oferecer exatamente o que o clienteprocura,diferenciando a atuação da empresa do que é feito na concorrência. “Às vezes é um olhar,uma promoção diferente, uma ação que é feitana loja que tem que ser diferente de outra, tem que ser diferente do que o concorrente faz”, ilustra.
Ela credita seu diferencial à frente do supermercado à atuação no chão de loja, supervisionando os funcionários, acompanhando todas as demandas do cliente, pesquisando e avaliando o comportamento do consumidor. Ela acha que a mulher tem maior percepção para os detalhes do dia a dia. “Sou uma pessoa que gosta de acompanhar tudo de perto. Busco o que o cliente necessita e entender do que ele gosta e do que não gosta. Essa é a minha forma de administrar”, destaca.
Bastante atuante no comércio da cidade, inclusive tendo sido presidente da Cooperboc, uma central de negócios que agrega supermercados de Bocaiuva e de algumas cidades da região, Edna mostra confiança e determinação, especialmente nos momentos mais difíceis da empresa. Foi o caso do auge da crise econômica a partir de 2015. Para piorar, foi o período também da chegada de um grande concorrente. Nada disso tirou a confiança da empresária. “Eu sempre acredito, vou em frente e não abaixo a cabeça, não tenho medo”, conta.
As exigentes consumidoras
A atuação da mulher na evolução do segmento vai além das funções de retaguardas, operacionais ou como proprietária. Aquela que está no dia a dia das lojas como cliente também tem papel de destaque para o varejo supermercadista. Quando ela se propõe a ir além de consumidora e representar essa classe,a sua importância aumenta. É o caso da presidente do Movimento das Donas de Casa e Consumidores de Minas Gerais (MDC-MG), Lúcia Pacífico, que por meio do Movimento, fundado em 1983, liderou campanhas de comparação de preços e divulgação dos locais de vendas mais baratas. Questionava ainda o atendimento ao cliente, a limpeza do supermercado e a qualidade dos produtos ofertados.
O segmento supermercadista necessitou se aprimorar diante de uma consumidora exigente e consciente dos seus direitos. Eraa mulher, do outro lado do balcão, influenciando e melhorando o ponto de venda. “A mulher sempre teve importante papel no segmento supermercadista, tendo em vista que na maioria dos laresé ela quem ainda vai às compras nos supermercados com maior frequência. Esse comportamento é comprovado historicamente, uma vez que a mulher sempre representou a figura responsável em buscar o melhor alimento a ser oferecido aos seus familiares”, analisa Lúcia. “Assim sendo, há muito tempo a mulher funciona como termômetro nos diversos setores varejistas, dentre eles, de forma enfática, o supermercadista”, afirma.
É assim também que pensa a professora Clélia de Carvalho. Para ela, a mulher é mais observadora no ponto de venda e cobra mais melhorias nos supermercados. “A mulher não tem dificuldade para cobrar mudanças, enquanto o homem acha mais difícil. A mulher tem mais percepção em relação ao que falta”, disse ela enquanto fazia compras numa das lojas do Verdemar na região da Savassi, em Belo Horizonte.
Também fazendo compras na mesma loja, a secretária Elinete de Souza avalia que quando o assunto é a atuação do consumidor, a mulher cobra mais e informa sobre aquilo que não encontra na loja para quenão falte produtos, por exemplo. “E o supermercado sempre busca atender aquilo que o cliente quer”, disse.
Uma senhora, que ao final da entrevista pediu para não ter o nome citado, avalia que a mulher é mais incisiva na cobrança para melhorar a oferta de produto, os preços e o atendimento e assim defender o direito do consumidor. “Não é vergonha lutar pelo que é da gente”, disse.
A presidente do MDC-MG lembra quea mulher contemporânea busca a versatilidade e luta para a quebra de paradigmas. “A mulher tem em seu próprio perfil, predicados distintos dos homens, tais como ser observadora, delicada, zelosa, organizada, sensível, sem perder o pulso forte, o que a torna capaz de tomar decisões difíceis no ambiente de trabalho, sem perder a ternura”, analisa.
Grupo de discussão
Com presença garantida em todos os cargos no segmento, as mulheres começam agora, de forma conjunta,a lutar por tratamento mais igualitário e cortês. Foi com esse objetivo que, em novembro de 2018, um grupo de mulheres executivas do segmento criou, em São Paulo, o Mulheres do Varejo, grupo para debater o papel da mulher no varejo. À frente dele estão duas grandes conhecedoras do ramo, asexecutivas Fatima Merlin e Vanessa Sandrini.
Elas fizeram uma pesquisa com 87 executivas do varejo com faixa etária entre 26 e 61 anos, que apontou que 62% delas não estão satisfeitas com a relação entre homens e mulheres no segmento. As executivas reclamam de autoritarismo, machismo, preconceito e discriminação na relação. Isso em se tratando de cargos mais elevados no ramo. Além disso, 80% disseram que o nível de esforço para alcançar cargos de direção é muito alto.
O Grupo Mulheres do Varejo tem opropósito de ser uma referência na construção de uma “nova onda” do setor, inspirando-se na força feminina. “Juntas queremos construir uma economia mais colaborativa,nos tornando agentes de uma transformação no varejo”, disse Fatima. O grupo de discussão já reúne 1,5 mil mulheres inscritas e mais de 500 atuantes, a maior parte em posições de alta liderança. Ou seja: elas já dominam o setor, mas querem chegar mais adiante.
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